A roça e as coisas ....
Fui pro sul no final de janeiro.
Sair da roça é difícil, porque eu já me acostumei com tudo aquilo.
Sair da roça é bom..abre a cabeça, se vê novas pessoas, se vê as
antigas, não fica com a chateação de amigos dizendo que eu deveria sair
mais, sair da toca.
Aí eu fui.
Fui animada, para não dar pano para a manga:sem o humor correto, não tem como dar certo.
Viajei.
Vi outras matas, outras casas.
Mas, quando eu voltei, foi como se um vórtex tivesse aberto suas portas
misteriosas, e eu tivesse caído no paraíso, por descuido, nalguma
esquina dos caminhos andados.
Não é apego. É não ser cega.
Não é chatice. É não ser burra.
Não é falta de amor aos outros. É me amar e respeitar.
Voltar para a mata, os pássaros já conhecidos...gente...cheguei, fui
tomar banho pois estava super cansada e suada de dirigir tantas
horas...no banho, pela janela, vi o tucano pousar na árvore da frente da
casa, e olhar para mim com o bico amarelo e laranja meio de lado, rosto
meio torcido para ver melhor aquele bicho estranho com aquela água toda
caindo por cima..ficou alí um tempo, enquanto eu não me mexia para não
afastar.
Voou embora e me deixou estasiada, ali com a água quentinha, que veio da mina, caindo reparadora nas minhas costas.
De noite, o silêncio, que nunca é e nunca será absoluto. Na mata, tem
muito som. Muita coisa acontecendo num metro quadrado. É que alguns sons
não se ouvem sem os olhos, como o arrastar das folhas nas costas de
valentes formigas, ou o bater suave de aves noturnas. O som do rio sobe
forte, marcante, parecendo mar verde na roça.
Sem luz da cidade, a noite é breu, o céu é carnaval de alegorias
brilhantes e cheias de estórias para contar. Interessante como os homens
da cidade estão sempre puxando uma tomada, para colocar uma luz, estão
sempre pedindo luz para ver melhor, para que a noite seja tão luminosa
quanto o dia, por causa dos mais variados motivos, o maior deles a
segurança, o medo de andar nas ruas, de noite, e ser surpreendida por um
bandido, coisa comum nas cidades grandes.
Perdeu-se a alegria natural da noite chegar, e do escuro mostrar ao
corpo que já é hora de recolher-se, deitar-se numa cama e dormir,
deixando ao corpo a tarefa de se recuperar do dia, e soltar alguns
hormônios noturnos para que o dia seguinte seja bom.
Dormir não é mais o momento sagrado de descanso, mas o momento
obrigatório que se tem entre dois dias. Dorme-se tarde, acorda-se cedo, e
ao dormir, é tudo claro. Tem luzes por toda parte na cidade...luzes
vendendo, luzes comprando, luzes mandando parar ou seguir, luzes que
apitam e giram, luzes e mais luzes...
Na roça, a noite vem inteira, carregada de seus mais puros e naturais
significados.... não há interferência do mundo moderno, nos dando alerta
por causa de bandidos...nosso alerta é tomar cuidado com os seres
noturnos da mata, para não assustar, para não pisar por engano, para não
ser pego de surpresa por lobos...mas é outro tipo de medo.
Estamos perdendo tudo por causa das coisas que acumulamos..
Estamos perdendo a naturalidade da vida porque queremos acumular
celulares, móveis, televisores, ares condicionados, carros, camisas e
tênis, relógios...na roça não tem hambúrguer de marca, nem nada destas
coisas...
Lembrei do Arnaldo Antunes, em COISAS:
"As coisas tem peso, massa, volume, tamanho, tempo, forma, cor, posição,
textura, duração, densidade, cheiro, valor, consistência, profundidade,
contorno, temperatura, função, aparência, preço, destino, idade,
sentido. As Coisas não tem paz".